top of page

26 de Junho de 2020

Festival de Teatro de Almada
Em quinhentas Palavras


Um Festival des(Temido) I

Quando a adversidade e os obstáculos provocados pela pandemia continuam a obrigar a cuidados sanitários, agora reforçados pela resolução nº 45-B/2020 do Conselho de Ministros, de 22 de Junho e num contexto de uma completa incerteza, a apresentação de um evento com a afirmação pública nacional e internacional como é o caso do Festival de Teatro de Almada é sem dúvida um acto de coragem.
 

Um cartaz com grande dignidade, que é igualmente uma janela aberta de Almada para Lisboa e para o mundo, para um mundo que se fechou como uma ostra, escondendo-se e protegendo-se de um invasor estranho, invisível e traiçoeiro mas escondendo também dos nossos olhos a sua beleza, a sua pérola, no nosso caso humano, escondendo a Arte que nos acompanha desde as grutas de Altamira.
 

Sem perder alento, caminhando num terreno movediço e instável não se podia perder a luz e as oportunidades que um evento, como o Festival de Teatro de Almada proporciona. Na incerteza é sempre melhor trabalhar na hipótese de se conseguir dinamizando novos formatos, novas formas de pensar e imaginar uma organização dentro do caos e porque não dizê-lo, do medo. Aprender a lidar com o medo e voltar a colocar espectadores numa sala onde se vai desenrolar um acontecimento ao vivo e com alguma proximidade é o grande desafio.
 

O Festival e a sua organização sempre se confrontaram com problemas que tiveram de solucionar. Problemas da mais variada ordem, é o normal numa organização com a dimensão do Festival de Teatro de Almada. Por exemplo, ainda em edições passadas, não muito distantes no tempo, o Festival foi sujeito a constrangimentos económicos que foram necessário ultrapassar. Aí a determinação, o terreno firme que a organização pisava, fez sempre prevalecer a vontade de fazer, em detrimento do desalento.
 

Agora o inimigo é outro e o combate é diferente. Os constrangimentos relativos à saúde pública e à segurança de actores e espectadores criaram um paradigma completamente novo e onde a experiência é zero. Nunca ninguém, dos vivos havia lidado com este tipo de situação de confinamento, de retracção do tecido económico, social e da estagnação completa de movimentos de toda uma população. Ainda por cima, lidar com a incerteza de uma melhoria, como se dizia no início, “vai tudo ficar bem” ou, se vamos ficar mesmo todos mal.
 

Construir um programa com as contingências do cenário, do provável e do talvez, é fazer um caminho muito pouco seguro mas que tinha que ser feito, mesmo na insegurança e no medo, temos que criar procedimentos seguros que dissipem esse medo. A Vida e a Liberdade merecem essa aposta.
 

Por isso o Festival de Teatro de Almada é não só uma organização destemida mas igualmente representa a necessidade de retomarmos, dentro dos constrangimentos e das limitações da pandemia, a nossa vida normal.
 

Independentemente de se conseguir ou não, concretizar todos os espectáculos programados, o importante mesmo foi transmitir, que há vida para lá da pandemia. A determinação e as atitudes responsáveis, podem fazer a diferença.


 

António Marques

Apresentação na Casa da Cerca

Almada 19 de Junho de 2020

Inês de Medeiros, responde aos jornalistas

Ines.jpg

Cerimónia protocolar de abertura

03 de Julho 2020

rodrigo.jpg

Rodrigo Francisco

Director Artístico do Festival de Almada

marcelo.jpg

Marcelo Rebelo de Sousa

Presidente da República Portuguesa

6 de Julho de 2020

Festival de Teatro de Almada (ano da pandemia)

 

Em setecentas Palavras 

 

 

Um Festival des(Temido) II

 

Chegou ao fim o primeiro ciclo ou dir-se-ia, como se tratou de um combate, o primeiro “round”, do Festival de Teatro de Almada, este ano com um novo formato, um formato dilatado no tempo, quebrando a tradição do 4 a 18 de Julho, algumas vezes com um dia de intervalo, para um calendário mais estendido entre 3 a 26 de Julho onde se podem verificar quatro ciclos onde acontecem quase todos os espectáculos, embora possa pontualmente coexistir alguma continuidade e ligação entre esses ciclos, uma solução imaginada para poder-se materializar, na prática, umas quase pequenas temporadas. O distanciamento social de segurança ditou menos espectadores e por conseguinte a necessidade de se desdobrarem as representações, criando assim umas quase temporadas de três a doze representações de dezassete espectáculos, repartidos por sete salas.

 

Neste primeiro ciclo, para além do que efectivamente conta, isto é o Teatro, com a apresentação de “Bruscamente no Verão passado”, de Tennessee Williams, com encenação de Carlos Avilez pelo Teatro Experimental de Cascais, de “Mártir”, de Marius von Mayenburg, com encenação de Rodrigo Francisco, pela  Companhia de Teatro de Almada, de “A grande emissão do mundo português”, uma dramaturgia de Jorge Palinhos, com encenação de Isabel Craveiro em co-criação com os actores, pelo Teatrão, de “O Mundo é redondo”, de Gertrude Stein, com encenação de António Pires, Ar de Filmes/Teatro do Bairro, a “Turma de 95”, de Raquel Castro, com encenação da mesma, pela Barba Azul, e co-produção de Teatro do Bairro Alto, Espaço do Tempo, Centro de Artes de Ovar e Teatro das Figuras e “By Heart”, com texto e encenação de Tiago Rodrigues, Teatro Nacional D. Maria II, a partir de uma criação original, pela Companhia Mundo Perfeito, co-produção de O Espaço do Tempo e Maria Matos Teatro Municipal, sucederam-se um conjunto de actos formais que abriram o 37º Festival de Almada e colocando, a cidade e a região, no centro de todas as atenções nacionais e mesmo internacionais uma vez que, mesmo sendo um dos únicos acontecimentos do género a nível europeu, conseguiu focalizar a atenção de jornalistas e de muitos criadores estrangeiros.

 

A par destas primeiras representações, outros actos são importantes salientar designadamente, a abertura das exposições de Homenagem a Rui Mendes, “O actor que queria ser sinaleiro” no foyer do Teatro Municipal Joaquim Benite e “O Sonho de J” de José Manuel Castanheira, na sala de exposições, igualmente no Teatro Municipal Joaquim Benite.

 

No primeiro dia marcaram presença, no Festival de Almada as mais altas individualidades da República, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, o Sr. Primeiro-ministro, António Costa, Nuno Artur Silva, Secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media, a anfitriã Inês de Medeiros, Presidente da Câmara Municipal de Almada e Rodrigo Francisco Director Artístico do Festival de Almada. No dia seguinte, a Sr.ª Ministra da Saúde, Marta Temido, misturou-se igualmente com os expectadores do Festival de Almada assistindo à representação do trabalho do Teatrão, “A grande emissão do mundo português”.

 

Ora, no contexto da pandemia e dos seus efeitos, com a paralisação não só da generalidade da actividade económica, mas igualmente, com a paralisia de toda as actividades ligadas às artes e à cultura, a abertura do Festival de Almada e a realização do mesmo, poderá constituir o sinal de viragem, o voltar desta página negra, escrita e representada de uma forma dramática, pela pandemia do Covid-19. 

 

O país, está de olhos em Almada e no seu Festival, ele é, como disse Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, “o Festival de Teatro”, um acontecimento cultural ímpar no país e uma referência internacional, um símbolo, da cidade de Almada e da região.

 

Almada e o seu Festival de Teatro, marca, de uma forma positiva, assente numa organização cuidada, des(Temida) e em muitos casos inovadora, capaz de refazer uma base de trabalho experimentada, aperfeiçoada e testada ao longo de mais de três décadas reconstruindo um novo modelo, um modelo que pode ou não funcionar na inconstância do progresso da pandemia ou de como tudo poderá funcionar dentro de uma visão optimista da reabertura das actividades ligadas à representação, às artes e ao teatro, acima de tudo acreditando que, como se dizia no princípio disto tudo, com razão ou sem razão, vai ficar tudo bem. (Andrà Tutto Bene)

 

 

https://www.youtube.com/watch?v=hSH_4xnE76k 

António Marques

8 de Julho de 2020

Festival de Teatro de Almada 2020 (ano da pandemia)

 

Em mil e quinhentas palavras

 

 

 

A grande emissão do mundo português

 

 

De repente, no palco, abrem-se as portas à imaginação e somos transportados sobre um capítulo específico da História do século XX. Um capítulo que, certamente, para a generalidade do público já é isso mesmo só e unicamente história. Para outros, bafejados pela longevidade e o elixir da vida, ainda presenciaram alguns dos acontecimentos que ali se irão retratar. Outros ainda, mais sortudos, ouviram falar deles por conhecimentos transmitidos de viva voz por parentes mais velhos, talvez mesmo pais ou avós, que os acompanharam e guardam memória para poderem fazer testemunho de viva voz, na mais ancestral tradição da oralidade.

 

Somos convidados a mergulhar naquela década, com início nos anos 40 do século XX e que representa um período particular não só da nossa história e da história da Europa, mas uma sucessão de acontecimentos com repercussões por todo o mundo. O ano de 1940 marca o agravamento belicista da 2ª Guerra Mundial, iniciado pela ocupação e desmembramento da Polónia em Setembro de 1939, um conflito que se vai generalizar nesse ano, à escala planetária, com a invasão e ocupação da Dinamarca, da Noruega, da Bélgica, da Holanda, do Luxemburgo, da França pela Alemanha e com a Itália a invadir o Egipto e a iniciar a ocupação da Somália Britânica. Em Lisboa comemora-se simultaneamente as datas da fundação de Portugal em 1140 e da Restauração da Independência em 1640, inaugurando-se a Exposição do Mundo Português.

 

O trabalho apresentado pelo Teatrão, um grupo de teatro sediado em Coimbra, focaliza-nos numa peça fundamental do regime saído do golpe militar de 28 de Maio de 1926 e da Constituição de 1933, aquela que suprimiu de uma forma permanente as liberdades e enquadrou a montagem do estado e a organização cooperativista e nazi. Organização que, diga-se em abono da verdade, não era uma inovação portuguesa do ditador Salazar mas que proliferava por vários países da Europa, a difusão das ideias e dos conceitos do regime e a sua propaganda utilizando o mais forte e popular meio de comunicação da época, a rádio. A rádio vai proporcionar a proximidade da mensagem e da comunicação colocando a voz do regime em cada sala e em cada lar.

 

Ali, apresenta-se a máquina de informação ou melhor de desinformação, de deformação e de manipulação, que também não era uma inovação do Estado Novo, que nestas e em outras matérias, se regia por padrões quer nazis, transpostos da Alemanha de Hitler, quer fascistas com referências firmadas na Itália de Mussolini e na Espanha de Franco.

 

Portanto, aquilo que ali se vai passar, muitas vezes ao vivo e com o envolvimento do público, na altura certamente escolhido a dedo, é o que se passava por toda a Europa nazi-fascista, é a construção do embuste e da mentira como garantia de um sistema político onde a repressão e a intolerância irão vigorar. Aliás o poder da desinformação chega a casa dos portugueses já há alguns anos através das emissões radiofónicas “Berlim a Alemanha fala!” com mais de uma dezena de programas diários e suportada ainda pela imprensa escrita difundindo a ideologia das potencias do eixo como é o caso da revista Esfera, que glorifica as campanhas militares nazis na Europa de Leste publicando artigos e imagens recebidas directamente da agência alemã de informação e propaganda.

 

O regime constrói uma informação deformada onde se recorre não só às notícias falsas, trabalhadas não só para despoletar um sentimento contra os aliados e pró-nazi mas igualmente com o objectivo de deformar a realidade portuguesa e a verdade concreta do país recorrendo-se mesmo à denúncia de comerciantes e portugueses progressistas denegrindo-os publicamente. Este processo, como tão bem é representado neste espectáculo, assentava não só na censura, mas na preparação metódica, sistemática e antecipada da informação falsa, divulgada, admitindo-se que na generalidade dos casos, por profissionais que não tinham outro âmbito que não fosse só, e unicamente, a locução.

 

Ali, na “Grande emissão do mundo português”, no que Igrejas Caeiro não se cansava de chamar, “O palco da rádio”, mostra-nos em que universo e como se trabalhava na rádio dos anos 40 e muito particularmente na então recentemente criada Emissora Nacional, que igualmente serviria de padrão e de orientação das restantes, poucas, estações existentes no espectro radiofónico português e na sua maioria a emitir em onda média. A onda curta será a frequência que a Emissora Nacional irá utilizar, para chegar aos territórios coloniais mais longínquos ainda sob administração portuguesa.

 

Estamos em presença de um espectáculo não só de grande alcance político mas sem dúvida de um grande e apurado rigor histórico. Um rigor que se patenteia na reconstrução do ambiente criado pelo Palco da Rádio, onde o grande microfone é o objecto que polariza e centraliza a nossa atenção, utilizado quer individualmente, quer colectivamente por toda a equipe da rádio mas igualmente, pelos convidados que vão desfilando no palco nas emissões ao vivo. Estas emissões ao vivo com público a assistir, com transmissão pelas poucas estações radiofónicas existentes e de limitado espectro são bem retratadas no filme de Arthur Duarte “A menina da Rádio”.

 

Os espectadores, também eles, constantemente mobilizados a participar na emissão, não com a sua opinião, que essa, por esses anos, não servia para nada, mas com os seus aplausos numa clara não só aprovação do que se passava e ouvia ali, mas de manipulação da assistência. Coisas que não mudaram muito desde esses dias até hoje.

 

É uma encenação exigente, tendo por base uma apurada pesquisa sobre a realidade portuguesa sendo o que transparece desde logo, não só pela escolha dos textos, mas na sua recreação num espaço radiofónico que, como o Estado Novo, no decurso dos anos, se vai desconfigurando, desconstruindo-se, acompanhando o desgaste da equipe radiofónica, isto é, de quem assegura a passagem da mensagem, à medida que o mundo vai mudando e evoluindo e os ventos de democracia e da liberdade se vão fazendo sentir do oriente ao ocidente, como o caso do “assalto” ao paquete Santa Maria que coloca em cheque, ao nível mundial, a situação da ditadura em Portugal e marca, de certa forma, o início da luta armada nas colónias ultramarinas.

 

Apresenta-se um esmerado, mesmo requintado guarda-roupa, quase saído de uma revista da moda dos anos 40, facilitando-nos a imaginação e prendendo-nos a essa época. Estamos mesmo nos anos 40 do século XX. Uma verdadeira viagem no tempo. Os padrões austeros que a moda e a moral iam tecendo, eles igualmente baseados em preconceitos e remetendo a mulher a um lugar secundário e submisso. Todo este ambiente é bem patente nas rubricas de aconselhamento feminino onde as ouvintes vão colocando, por carta, as suas dúvidas e preocupações procurando conselhos para os seus comportamentos.

 

É um trabalho pedagógico, assumido e de excelência, o retrato de uma sociedade e das suas matizes culturais, apresentado um desfilar de artistas e de intervenientes na vida política e cultural portuguesa que fizeram, nos papéis que representaram na vida real, uma parte significativa da história deste país, um quase memorial de quem, independentemente do papel que desempenhou ou que foi chamado a desempenhar pelo regime, sendo importante que as gerações do século XXI saberem que existiram e até, se for o caso, aprenderem algo com esses portugueses. Eles estão ali, vivos e excelentemente representados.

 

O guião chama pois ao palco, ao velho e lendário Palco da Rádio, nomes como Olavo d'Eça Leal, Fernando Peça, Igrejas Caeiro, Artur Agostinho, interpretes de teatro radiofónico como Raúl de Carvalho, Amélia Rey Colaço, Henrique Santana, João da Câmara, Aurea Rodrigues, Curado Ribeiro, Maria Eugénia, Virgínia Vitorino, Teresa Cabral, Jorge Alves, Maria Gabriela, João Villaret, poetas como Fernanda de Castro ou artistas do universo da canção, como Artur Garcia, Maria de Lurdes Resende, Tomé Barros Queirós, Beatriz Costa, Maria da Graça, as Irmãs Meireles, os Ekos e tantos outros que fizeram e construíram o imaginário dos nossos avós e deste país. 

 

Uma emissão que nos leva desde a abertura com a Marcha de Trabalho, da Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, com uma letra a levar-nos para a conhecida frase colocada pelos nazis à entrada de Auschwitz, "Arbeit macht frei", “o trabalho liberta”, quando se entoa no vigor de um grupo coral, “Vamos trabalhar com alegria… trabalhar o dia inteiro… com vigor...” e se concluiu, depois das atribulações de uma emissão demasiadamente prolongada no tempo, com o bater das horas no velho relógio da sala.

 

“A grande emissão do mundo português” é uma dramaturgia de Jorge Palinhos, dramaturgo e professor de teatro, especialista em dramaturgia contemporânea, com encenação de Isabel Craveiro, encenadora, pedagoga e directora artística do Teatrão, em co-criação com os actores, pelo Teatrão, uma Companhia de Teatro sediada em Coimbra e enquadra-se num vasto projecto de investigação e tratamento teatral sobre o Estado Novo, neste caso, o segundo capítulo da Casa Portuguesa do Teatrão, tendo sido a sua primeira criação sobre esta temática o trabalho, “Eu Salazar”. A produção teatral é completada com um conjunto de outras produções, debates e estudos com incidência neste tema. Um trabalho a ver, a pensar e porventura, mesmo a rever.

 

António Marques

A_grande_emssião_anexo_09-07_Page_01.j

10 de Julho de 2020

Festival de Teatro de Almada (ano da pandemia)

 

Em setecentas Palavras 

 

 

Turma 95, de Raquel Castro 

 

 

Turma 95 é um exercício de memória e onde percebemos que aquilo que conservamos de uma determinada época da nossa vida, esse conjunto de vivências pessoais e subjectivas, nunca é a mesma visão de quem connosco fez o mesmo percurso e viveu os mesmos acontecimentos. Mesmo se essa visão fosse recolhida no momento em que a acção se desenrolou, as visões e as opiniões seriam já, seguramente, diferentes. Cada ser humano é uma entidade própria e única que vive e vê o que se passa e o que acontece à sua volta de uma forma única, um quase fenómeno de daltonismo colectivo em que, o que se vê, pode ter, ou terá mesmo, tonalidades diferentes à medida que a luz vai variando a sua intensidade e que o ângulo de observação se vai modificando.

 

Os sentidos humanos assumem-se como elementos diferenciadores das vivências humanas, vindo a seguir o substrato cultural e social em que cada ser humano, se vai interligando na visão plural da história.

 

Partindo de uma criação da companhia teatral Third Angel e da sua obra “Class of 76” que, de uma fotografia de uma classe de um jardim-de-infância, procurou os caminhos das pessoas e a sua posição na sociedade, a protagonista, parte também ela à procura do percurso e das histórias de uma turma, a sua turma,   do Colégio São João Bosco, sediado nas proximidades do cemitério dos Prazeres, uma turma que, em 1995, concluía o 9º ano de escolaridade e composta por 32 alunos, que após a conclusão desse grau de ensino, cada um seguiu o seu caminho. Como normalmente acontece é um afastamento quase definitivo quando o grupo se desfaz e separa, podendo um ou outro elemento que, num primeiro momento se mantém em contacto com alguém, por uma questão de amizade ou de partilha de alguma vivência especial, mas tem sempre uma expressão residual. A única ligação entre eles era uma fotografia de grupo, que por informação da protagonista, a maioria já nem se lembrava da sua existência.

 

 

 

É uma proposta de investigação, que irá demorar algum tempo a ser trabalhada, construindo-se um documento sobre uma amostra determinada, precisa e fechada, não de uma geração, uma micro amostra, onde a normalidade e a realidade, não se irão rever. Basta levarmos em atenção as características de classe do grupo analisado e por aqui nos ficamos. Deste modo, reconstrói-se o caminho que cada um tomou após a separação e igualmente recolhe-se a recordação que cada um guarda dessa vivência comum, dessa turma do ensino secundário de 1995, tentando-se uma narrativa comum, ou mais ou menos comum, dos acontecimentos e factos desse ano, um pouco como uma reduzidíssima sinopse das diversas vidas que se juntam e interligam ali.

 

Para onde foi, o que fez, o que estudou, se casou ou é solteiro, o que desejava ser e o que é, etc. Desta forma constrói-se um monólogo com perto de 1 hora e 10 minutos, que é o tempo que demora a apresentação de toda a matéria, ou seja o tempo em que se desenrola o espectáculo, ao ritmo do passo e dos limites do palco e onde a única dinâmica é produzida pela mudança de direcção de trás para a frente ou da frente para trás, sempre na mesma direcção de alguém que ali se confessa, uma privilegiada por ter frequentado aquela escola, não escondendo de estar entre os melhores alunos do seu tempo e por conseguinte da dita turma, isto claro, na escala das notas.

 

Vamos pois sendo assim informados, um a um, de quem eram, das suas alcunhas, de alguns dos seus gostos, das suas paixões, o que os mobilizava e da sua ligação com protagonista e autora, uma ligação, nem sempre muito forte, confessando-se mesmo que, havia um colega seu, um daquele grupo de 32 jovens, que ela, nem se lembrava de alguma vez ter falado com ele.

 

Felizmente, certamente por falta de meios, na minha turma, a Turma 72, do 3º ano do meu curso geral, equivalente ao 9º da Turma 95 e na escola onde andei, não se faziam fotografias de grupo, pois seria difícil que, dos 32 alunos que ali se sentaram 29, se tivessem licenciado.

 

António Marques

13 de Julho de 2020

Festival de Teatro de Almada 2020 (ano da pandemia)

Em setecentas palavras 

 

By Heart

de Tiago Rodrigues

 

By Heart, é uma proposta de trabalho inesperada e muito interessante e mesmo sendo um monólogo, consegue prender o público, ganhá-lo para a causa, de uma forma subtil e inteligente, impondo diferentes ritmos, ao mobilizar para o palco 10 espectadores com quem vai interagindo à medida que toda acção se irá desenrolar. Eles terão de decorar, entre eles um soneto de Shakespeare. 

 

Tiago Rodrigues, director artístico do Teatro Nacional D. Maria II, trouxe um caixote de livros, que a avó Cândida, mesmo sendo uma cozinheira especializada em bacalhau frito e cabrito no forno, sempre gostou de ler e sempre leu muito. Porém, sentido estar a perder a visão, pediu-lhe para ficar com os livros, ela, desejava unicamente, conseguir decorar um livro, um livro que pudesse reler sempre que o desejar e pediu ao neto para o escolher. Era um caixote com livros, do tipo daqueles que ficam esquecidos nas estantes encobertos por novas edições com capas mais coloridas e papel ainda a cheirar a tinta. Talvez mesmo raridades e que irão constituir a grande âncora do desenvolvimento de toda a acção e de tudo o que ele quer transmitir ou deixar junto do público, porque não estamos em presença de um trabalho vazio ou de simples entretimento, mas de algo com um objectivo preciso, a necessidade de preservação da escrita e da palavra, nem que se tenha para isso de recorrer à memória

 

O livro, a palavra e as ideias e a sua transmissão é o que nos oferece o caixote de livros que o Tiago, carregou do lar onde a avó vivia, para ali colocar à disposição do público, como um conselho, como aqueles conselhos que o Prof. George Steiner lhe vai dar nos seus programas televisivos. A partir daqui bem escudado, começa a desafiar a memória dos dez espectadores à medida que vai trazendo, uma a uma, diversas obras que vai buscar ao caixote umas vezes, outras refere-as de memória para ir seguindo o seu caminho e o seu objectivo, que está longe de ser a simples memorização de umas palavras ou de uma fracção das mesmas do soneto de Shakespeare, encaixando passo a passo, de memória, uma vez que estamos em presença de um espectáculo que trata disso mesmo, da memória, citações, algumas com origem no Prof. Steiner e no seu programa “O belo e a consolação” mas igualmente com origens diversas e que vão desde o profeta Ezequiel até a escritores e poetas da actualidade. 

 

Para Tiago Rodrigues, este espectáculo ou esta quase intervenção pública não é novidade, não se trata de uma estreia mas de um trabalho bastante rodado e por isso seguro e com ele já pisou muito palco e fez muita estrada mesmo fora deste jardim à beira mar plantado. Um trabalho que se reajusta à realidade, ao local, ao público e à língua. 

 

Infelizmente, nos tempos que correm existem sinais preocupantes relativamente à nossa memória colectiva e com os valores que têm servido de alicerces às sociedades humanas constituindo-se este trabalho igualmente como um alerta para os perigos que espreitam e que podem condicionar não só a liberdade e a criatividade humana mas o próprio conhecimento. 

 

A memória e a oralidade podem voltar a desempenhar um papel essencial como garante da liberdade e do pensamento.

 

Os livros do caixote da avó Cândida e os autores e as obras que o Tiago vai chamando ao palco são assim também eles evocados para quem não os conheça ou não conheçam as obras que nos deixaram possam voltar ao lugar de destaque nas nossas estantes.

 

Há ainda um outro aspecto relevante que por último nos é salientado ou chamado à atenção e que não é menos importante e que consiste na compreensão de que cada livro que lemos, vão ficando marcas conhecimentos, vivências da nossa e da imaginação alheia, fantasias e sonhos, guardados nos diversos locais da memória, que também eles contribuem para iluminar o nosso caminho, contribuindo para a nossa decoração interior e o que ele nos deixa, para além da história da sua avó Cândida, do soneto de William Shakespeare que nos oferece ao final como uma quase recordação, é uma extensa e variada lista de livros e autores como trabalho de casa.

António Marques

Festival de Teatro de Almada 2020 (ano da pandemia)

Em setecentas palavras 

 

Castro

de António Ferreira

 

Conhecemos a história de Inês e do Pedro ou do Pedro e da Inês e do Pedro da frente para trás ou de trás para a frente. Observamos filmes e documentários, histórias levadas ao palco, algumas com leituras diversas e pontos de vista opostos, abrindo sempre a discussão sobre a verdadeira essência do crime perpetrado a mando de El Rei de Portugal, disso é que não há dúvidas para nenhum de nós que se tratou de um hediondo e sanguinário crime mas temos que forçosamente de o focalizar na idade média que é uma das épocas mais sangrentas da história da humanidade mas igualmente de um tempo e afirmação da nacionalidade e do jovem reino ganhando consistência, personalidade e uma identidade. Um crime com uma feição política sem dúvida de um medo desmedido do jovem do reino vir a ser absorvido por Castela como aconteceu com o Reino de Leão. Podemos mesmo chamar de pânico não só a jovem nobreza em formação mas igualmente o povo que sentia como sua esta identidade criada pelo rei fundador. Esse sentimento foi, aliás, que esteve presente quando quase 30 anos após a morte de Castro, o Mestre de Avis, aliado ao povo de Lisboa, líquida o Conde Andeiro, um galego fiel a Castela que passava demasiado tempo no Paço da Rainha.

 

Embora sejam sempre leituras múltiplas de um texto do século XVI, sobre um acontecimento ocorrido dois séculos antes e que encerra algumas dúvidas ou curiosidades conforme a visão que se queira ter, como por exemplo, o texto original ter sido publicado 29 anos após a morte de António Ferreira, de forma anónima e já com 12 anos do Reino de Portugal estar sob administração da coroa filipina, ainda se discutindo nos meios académicos, se esta obra, com o título original “Tragédia mui sentida e elegante de Dona Inês de Castro”, será mesmo de António Ferreira.

 

Ora, porém, para lá das várias leituras que tenham sido realizadas e trabalhadas sobre o texto de António Ferreira e da forma de como cada um vê a história e esta tragédia, o que temos aqui, e o que nos traz o Teatro Nacional de São João é, dentro do texto contextualizado na época em que foi escrito, Nuno Cardoso, encenador, recentra as personagens e a história numa roupagem actual construindo um ambiente moderno e uma figurinação igualmente, para além de elegante, nossa contemporânea, onde o silêncio pode ser quebrado, por exemplo, por um tema como “Every Breath You Take”, dos The Police, com origem num telemóvel.

 

Assim, num cenário partilhado podemos estar em três casas distintas onde o autor, no seu texto original e nos cinco actos que o compunham desenrolou toda a cadência dos acontecimentos. A casa do rei, a casa de Pedro, em Montemor-o-Velho, e a casa de Inês de Castro, em Coimbra, mas está tudo ali, aberto para o público, todos os movimento e o desenrolar de toda a acção se passará num quarto, numa casa de banho, num escritório, numa sala, numa cozinha ou no espaço exterior que poderá ser um jardim com baloiço enquanto, a casa senhorial tem um balcão onde Inês poderá implorar aos céus não a sua inocência mas a clemência que não chegará a tempo de a salvar.

 

Enquanto acção principal e onde todas as atenções são obrigadas a fixar-se, o príncipe D. Pedro poderá estar a tomar, na cozinha, o seu pequeno almoço de cereais.

 

Uma abordagem diferente que algumas vezes nos pode até baralhar, mas em nosso auxílio, vem sempre o “Coro” que nos recoloca no essencial da acção. Por essa razão, fora das formas clássicas de representação do texto a obra ganha novos contornos e uma nova actualidade.

 

Este espectáculo, como no nome do texto original se escrevia, elegante, reflecte as possibilidades imensas das abordagens que se podem realizar a partir da imensa imaginação humana de criar e recriar um sonho, neste caso um sonho de amor e igualmente de uma tragédia, mas que personifica também um sonho de liberdade.

 

Castro estreou em Março, um pouco antes de se começarem a sentir os efeitos, devastadores para o Teatro e para a Cultura, da quarentena e das políticas de confinamento, Almada recebeu-a de braços abertos.

 

 

António Marques

Festival de Teatro de Almada 2020 (ano da pandemia)

Em pouco mais de setecentas palavras 

 

Mártir

de Marius von Mayenburg

 

Mártir é um trabalho da Companhia de Teatro de Almada, estreado em 2018 que agora volta ao Festival de Teatro, com mais uma temporada, sobre um texto de Marius von Mayenburg que coloca em evidência a radicalização de um jovem a partir de leituras de citações do Novo e do Velho Testamento. Esse jovem, vai fazendo um caminho para o fundamentalismo religioso, neste caso, o fundamentalismo talvez cristão, porque são essas as pistas que se vai deixando.

 

Dentro da dinâmica imposta pelas citações, com a referência e nomes a quem as fez escritos no cenário vai-se promovendo a ideia, mesmo com a sua descontextualização, de que a partir das mesmas o jovem ou um jovem qualquer, se radicaliza, tentando impor a sua visão a quem com ele tem alguma relação ou se cruza, amigos, mãe, professores, etc. O fundamentalismo vai reflectir-se em questões da moral com uma visão subvertida dos géneros, masculino, feminino e das suas relações, das práticas da igreja e dos seus ministros, da educação e do ensino, em preconceitos rácicos que irão descambar no antissemitismo. Por último, o personagem vai enveredar pela fomentação da violência por interposta pessoa, mobilizando para isso um colega que, devido a uma deficiência, se torna dependente das suas ideias e das suas citações. Uma vez que o esperado e desejado milagre não aparece, ele mesmo torna-se crítico e por essa razão igualmente alvo. O alvo principal será mesmo uma professora que, por ser mulher, de ascendência judaica e que não sendo possível a sua eliminação física, dado que o potencial autor material, se recusa a realizar o acto de sabotagem, dos travões da mota da professora vai recorre-se à difamação pública da mesma e à vitimização com recurso à mentira. Felizmente a professora resiste.

 

No mundo actual, mesmo nas sociedades mais desenvolvidas, os jovens desenvolvem atitudes radicais e esse radicalismo mesmo sendo de origem religiosa não deixa de ser uma questão relevante, digna de estudo e análise nos mais variados prismas ou visões. As suas origens e a desregulação que estas situações apresentam, merecem uma profunda reflexão de forma a proporcionar um quadro de medidas, certamente de contornos educacionais e pedagógicos, que diminuam a possibilidade da sua ocorrência.

 

No entanto, basear a representação do fundamentalismo, a sua radicalização e o antissemitismo em citações contínuas do Novo e do Velho Testamento, retiradas do seu contexto e da sua época, dando-lhes muitas vezes ênfases e sublinhados sem a necessária explicação do que de simbólico a escrita desses livros encerram, não parece ser uma forma correcta de se construir a ideia do fundamentalismo e da sua radicalização uma vez que, esta ocorrência e este fenómeno ou problema, não é, ou não persiste unicamente na fé cristã seja ela representada por católicos, ortodoxos, protestantes ou evangelistas. Por outro lado, reconhecendo que estes fenómenos existem, a sua expressão mais radical, mais letal tem um peso diminutos e pontuais nestes credos. Assim, não nos parece que sejam a fé e as crenças onde o problema do fundamentalismo e da sua radicalização, apresente maior perigo. Isso já não se passa, com a fé muçulmana e as suas múltiplas, legítimas leituras e interpretações da palavra do profeta Maomé.

 

Então, por que razão o autor não constrói a sua narrativa na base do Novo e do Velho Testamento e das suas contraditórias citações? A resposta é simples e fica na consciência do leitor. Se construisse a narrativa na base de outras citações mostraria um sinal de coerência e de coragem, próxima da posição assumida, por exemplo, por Salman Rushdie quando publicou a sua obra “Os Versículos Satânicos”. Só que ele sabe que, ao fazê-lo, estaria sujeito às retaliações e às acções de radicais que deseja tratar e poder-lhe-ia mesmo acontecer, pagar com a vida a ousadia, acabando como os colaboradores de Charlie Hebdo.

 

O fundamentalismo e o radicalismo religioso manifestam-se das mais variadas formas e expressões representando sempre uma clara regressão civilizacional. É o caso da passagem do Museu Santa Sofia1, antiga catedral cristã e mesquita muçulmana após a queda de Constantinopla, novamente a local de culto muçulmano, revogando o poder turco, representado pelo presidente Erdogan, o Decreto de Mustafa Kemal Atatürk, fundador da Turquia. Atatürk conhecendo as disputas religiosas em torno do edifício retirou-o da esfera religiosa transformando-o em museu.

 

Mártir tem a encenação de Rodrigo Francisco e os cenários estiveram a cargo de José Manuel Castanheira. Ana Cris viu o seu trabalho premiado pela Sociedade Portuguesa de Autores como “Melhor actriz de 2018”.

 

 

António Marques

1 Agia Sophia, que significa "Sagrada Sabedoria";

Festival de Teatro de Almada 2020 (ano da pandemia)

Em setecentas palavras (+/-)

 

Bruscamente no Verão Passado

de Tennessee Williams

 

O Teatro Experimental de Cascais trouxe até ao Festival, Tennessee Williams, com um dos seus trabalhos mais conhecidos, Bruscamente no Verão passado ou Subitamente no Verão passado, conforme certamente a visão do tradutor, um texto denso, inquietante e difícil, mas igualmente, mesmo assim, um texto alvo de várias leituras e interpretações, acontecendo a última no início do corrente ano, por Bruno Bravo e a Companhia Primeiros Sintomas. Esteve em cena no Teatro Nacional D. Maria II. A adaptação deste texto para a versão cinematográfica é igualmente sobejamente conhecida, com interpretações de gente que ficou famosa no grande ecrã e nos estúdios de Hollywood como, Elizabeth Taylor. Ela ganhou mesmo, em 1960, com a sua interpretação, o Globo de Ouro na categoria de melhor atriz.

 

Carlos Avilez e o Teatro Experimental de Cascais tinha assim uma tarefa complicada na criação de um novo produto. As representações já realizadas, criam sempre memórias e referências, boas ou más que, de alguma forma condicionam o trabalho e visões futuras. Uma nova visão é sempre pois um novo desafio para toda a equipe não só para o encenador, mas igualmente de cenografia, de figurinação, de som e obviamente dos actores. A não acontecer assim trata-se simplesmente de um recalque ou mesmo cópia, nada mais. Uma nova encenação não pode pois repor o já visto mas é dar uma nova alma ao texto, relendo-o criando uma obra segundo a nova visão do encenador, neste caso de Carlos Avilez. Não nos podemos esquecer que estamos perante um texto “chocante” de Tennessee Williams e necessitamos sempre de nos posicionar na época em que estreou, 1958. Nessa altura a peça foi apreciada pela sua estrutura dramática aparentemente simples, mas ao mesmo tempo detestada pelo seu conteúdo "perturbador" de homossexualidade, violação, loucura e canibalismo. É um drama perturbador onde a verdade tenta ser sempre ocultada pela mentira, socorrendo-se, se necessário destruir a vida de quem pode contribuir para o seu esclarecimento. Lentamente, somos assim levados a entrar na estranha casa de Violet Venable e a descobrir o caminho para a verdade do que aconteceu com o seu filho Sebastian Venable, falecido subitamente no Verão passado em circunstâncias atrozes e inexplicáveis.

 

O palco é sempre um espaço de excelência para a representação de uma obra com a projecção de Bruscamente no Verão passado, onde a mudança da acção pode ser marcada por pequenos pormenores que vão desde uma determinada marcação no chão ou um material diferente no mesmo. Um móvel, uma escada ou uma varanda, são pois elementos que, em conjunto com um determinado som, podem ser factores que confluem para a representação ou que podem servir de ligação como esteio da nossa imaginação, da acção e onde a mesma se desenrola. O silêncio ou a ausência de luz, podem igualmente serem factores marcantes de uma representação servindo até, em alguns casos, de sublinhado à mesma. E são esses ingredientes que, nas devidas proporções, são tecidos como uma rede. Carlos Avilez é um mestre na arte da encenação e genialmente consegue recrear o texto de Tennessee Williams, mobilizando, que é essa a sua primeira intenção, a atenção dos espectadores, prendendo-nos ao desenvolvimento da acção.

 

 

 

A apresentação e a estreia no palco principal do Teatro Municipal de Almada foi igualmente um desafio para Carlos Avilez e para Teatro Experimental de Cascais. A peça, a sua encenação e a cenografia foram concebidas e planeadas para ser estreada e fazer o seu percurso na sala do TEC, o Teatro Municipal Mirita Casimiro, uma sala de características e dimensões bem diferentes do palco principal, com os seus múltiplos equipamentos e máquinas. Esta situação torna ainda mais relevante a adaptação realizada para um espaço diferente e a grande determinação em retomar o trabalho e participar na grande festa do Teatro e da Cultura que é o Festival de Teatro de Almada.

 

Avilez, em Almada e no Festival, sente-se em casa, entre amigos, acarinhado por um público, exigente, mas tolerante e não lhe negando esforço ou dedicação. Um Festival, que já o homenageou e que tem evoluído muito ao longo das trinta e sete edições e um público que vive este evento como fazendo parte integrante do seu ADN e que há muito aprendeu a cantar:

 

“Em terras

Em todas as fronteiras

Seja bem vindo quem vier por bem

Se alguém houver que não queira

Trá-lo contigo também “ 1

 

 

António Marques

1 José Afonso Aveiro 2 de Agosto 1929 – Setúbal 23 de Fevereiro de 1929;

https://www.youtube.com/watch?v=EqAZ_1JhUOw

 

Festival de Teatro de Almada 2020 (ano da pandemia)

Em setecentas palavras

 

Future Lovers

de Celso Giménez

Todas as gerações criam as suas próprias contradições com o mundo que os rodeia, com as normas, regras e padrões impostos e com os quais se têm que conformar e coabitar. Claro que as gerações mais novas num primeiro momento não só se recusam a aceitar algumas destas normas, regras e padrões como alguns, de uma forma mais esclarecida, outros de um modo mais naïf, convencem-se que, com a sua força, com uma força aparentemente inesgotável e poderosa, poderão constituir-se com uma força adversa e determinante na mudança do mundo que está sempre prestes a ruir.

 

É um engano cíclico e transversal a todas as gerações que nos antecederam, seguramente a razão, de uma permanente frustração. Na realidade, os factores que potenciam a mudança nas sociedades humanas, revolucionando-as num sentido lato do conceito, não dependem da apropriação de um grupo etário por mais determinado, impulsivo e esclarecido que ele seja e da sua determinação.

 

Pelo contrário o sentimento de mudança terá sempre de ser compreendido como uma vontade e uma necessidade transversal a várias gerações e da base para o topo da sociedade, isto é das classes mais desfavorecidas para as que detém os meios financeiros e económicos, o poder e a decisão. Na mudança prevalece sempre a possibilidade de uma vanguarda motora, mobilizadora e motivadora que “obrigue” a sociedade a uma nova organização.

 

Entre a alegria, o voluntarismo e o desprendimento da juventude, com os seus problemas específicos, inerentes ao seu próprio desenvolvimento político, social e económico, às suas necessidades e obstáculos designadamente falta de apoio aos estudos, falta de trabalho e de valorização profissional, precariedade, dificuldades de constituição da sua própria família, falta de alojamentos entre outros, são sempre um conjunto de factores que podem potenciar a reivindicação, mas são igualmente problemas que, embora sejam mais persistentes na juventude, vão manifestar-se ao longo da vida.

 

Ao nível das relações humanas, mesmo com as facilidades tecnológicas que actualmente existem, as relações entre os jovens, pouca ou nada mudou ou seja, podemos ter maiores facilidades de comunicação, mas isso não tem contribuído para uma coesão maior entre os jovens e para a sua realização como seres humanos. Mobilizam-se para determinadas acções, de aparente força e determinação mas que se esfumam na falta de organização e na não existência de enquadramento que lhes dê seguimento. São questões que se levantam no conjunto de diálogos e da narrativa da peça, apresentados com representativos de uma geração, dos seus desejos e das suas frustrações, da utopia, do sonho, da felicidade mas também da futilidade.

O trabalho apresentado pressupõe investigação e os diálogos que vão sendo representados no palco, entre alguma moderada loucura, aceitação ou contestação vão criando na representação a visão que um grupo de jovens tem da sua vida. Aqui sobressai, devemos ressaltar que, por muita proximidade que exista, os hábitos, os problemas e organização social dos jovens madrilenos é bastante diferente dos jovens portugueses.

 

Como que se pode entender, em Future Lovers, ali também é representado as concentrações maioritariamente de jovens e designadas por “botellones“. O “botellón” é um termo que se utiliza para se referir a uma concentração de grupos de pessoas, que ficam nas ruas, praças, jardins e em outros espaços públicos durante algum tempo bebendo, geralmente álcool, com amigos e conhecidos. Vulgarizado a partir de Espanha como resposta da juventude às condicionantes dos espaços privados para satisfação de uma vida social mais colectiva e em substituição de pubs, bares e discotecas com consumos mínimos ou entradas pagas e bebidas dispendiosas e onde raramente se consegue falar e socializar, o consumo do álcool passa a ser conseguido com a compra de refrigerantes e bebidas de alto teor alcoólico que se misturam e podem ir desde o vodca ao rum ou mesmo, ao absinto e à aguardente no seu estado mais puro e que consomem em grandes quantidades.

 

Não sendo uma inovação e uma característica desta geração ela herda este hábito existente desde há algumas décadas, impondo-o e repercutindo-o, isso sim, uma característica desta geração, da geração Erasmo, colocando-se a nu a impotência, futilidade e a consciência de que algo não está a correr bem assumindo-se por isso uma ultima ideia, na pergunta:

 

“ - Porque me tornei num cobarde?”

 

António Marques

Festival de Teatro de Almada 2020 (ano da pandemia)

Em setecentas palavras

 

As artimanhas de Scapin

de Molière

A comédia e a alegria chegou ao Festival des(Temido) isso graças ao velho Molière e pelas mãos de uma das mais consagradas companhias portuguesas de Teatro que, felizmente, contra ventos, marés e pandemias tem resistido a todas as adversidades e obstáculos marcando presença na nossa vida desde 1972.

 

Molière, por outro lado, ainda anda cá há mais tempo, quase quatro séculos e As artimanhas de Scapin, teve a sua estreia em Paris, no Palais Royal, corria o ano de 1671 e quem diria que podia trazer alegria e boa disposição a Almada mesmo que o seu bastão, tão usado na marcação do inicio dos espectáculos, tenha sido substituído pela bengala do João Mota um encenador que com reduzidos custos cria um grande espectáculo a partir de uma sátira burlesca vai buscar à “commedia dell’arte”, segundo o próprio João Mota, “o elogio da sobrevivência.” O texto é uma adaptação da tradução de 1962 de Carlos Drummond de Andrade.

 

Molière escreve esta comédia dando o protagonismo ao ardiloso Scapin, um criado com uma existência feita de expedientes e artimanhas com um único objectivo, a sobrevivência num mundo onde a avareza e ganancia reinam e que são tão bem representadas pelos dois abastados mercadores napolitanos, Argante e Gerôncio. São sempre temas recorrentes na sua escrita tendo-lhe mesmo dedicado uma outra obra bem conhecida do público do Festival de Almada, “O Avarento” e os diálogos entre Eufrosina e Harpagão.

 

“Eufrosina – Senhor…

Harpagão – Esperai um pouco. Já venho falar convosco. Vem a propósito uma voltinha pelo meu dinheiro.”

 

João Mota, vai assim fixar a acção em Nápoles e para isso trás em seu socorro, Pavarotti e o tema de fundo Santa Lúcia1. O importante é o trabalho dos actores, a sua interpretação e dispensa uma figurinação diferente do que hoje, o homem comum, veste. Calças de ganga, vestidos de chita, camisolas de lã, camisas, etc, é o chega e sobra. Arcas empilhadas, saídas de algum armazém de antiguidades talvez um sinónimo de acumulação e fortuna ou, simplesmente de quem parte e de quem chega ao velho porto de Nápoles, como Argante e Gerôncio. O resto é a dinâmica da acção com os actores a darem o seu melhor.

As artimanhas de Scapin, é um texto que tem por base o enredo de Formião, uma peça da Antiguidade clássica da autoria do poeta Terêncio e representada pela primeira em 161 a.C. Isto, esta referência histórica, com mais de dois mil anos, leva-nos a reflectir que, no essencial, o homem e a sua relação com dinheiro e nesta sociedade criada pelo sistema capitalista, um sistema baseado na ganancia, na concorrência sem principados ou respeito pela diferença entre seres humanos, não parece que o homem de hoje seja muito diferente de há dois mil anos atrás. É uma constatação certamente preocupante para quem acredita que, com o trabalho espiritual e cultural, como por exemplo através das artes, podemos melhorar o ser humano. Não me parece que estejamos a conseguir esse desígnio.

 

Molière, também vem falar-nos do amor e da liberdade de estarmos com quem amamos e não com quem nos querem impor tentando amarrar o mais nobre sentimento humano os interesses do dinheiro. Essa é uma luta que os dois jovens, Octávio e Leandro, vão travar já que na ausência dos seus respectivos pais, os tais mercadores abastados, estabeleceram elos amorosos que dificilmente poderão ser bem vistos ou mesmo aceites. Octávio, mais arrojado, casou-se mesmo secretamente com Jacinta, uma jovem pobre, e Leandro apaixonou-se por Zerbineta, uma jovem cigana.

 

Só há uma pessoa capaz de tentar resolver o problema dos jovens, essa pessoa é Scapin que ao seu jeito, lá vai tecendo uma teia de aldrabices, cada uma mais ousada que a anterior onde pretende dar uma lição a cada um dos mercadores. Para isso é mesmo necessário convence-los a desembolsar quantias avultadas, quantias essas não para ele mas para os jovens poderem satisfazerem compromissos devido aos seu envolvimentos amorosos.

 

Carlos Paulo, Daniela Santos, Gonçalo Botelho, Hugo Franco, Igor Sampaio, Marco Paiva, Miguel Sermão, Patrícia Fonseca e Rogério Vale, são um elenco de excelência e As artimanhas de Scapin vai estar em cena, depois desta estreia e temporada no Festival de Almada, na Comuna a partir de Setembro.


 

 

António Marques

1 Luciano Pavarotti, nasceu em Módena a 12 de Outubro de 1935 e faleceu em Módena, 6 de Setembro de 2007; https://www.youtube.com/watch?v=D36Vl9w0Ot8.

O Festival e a Informação

 

37fa-folha-01_Page_1.jpg
bottom of page